Reencarnação e Cristianismo Primitivo: Uma Análise Histórica

Entre os seguidores do movimento “Nova Era”, uma afirmação recorrente é que os primeiros cristãos acreditavam na reencarnação, e que essa doutrina foi suprimida por líderes da Igreja em concílios posteriores. Shirley MacLaine, uma figura conhecida da Nova Era, sugeriu em seu livro Out on a Limb que “a teoria da reencarnação está registrada na Bíblia, mas foi removida durante um concílio ecumênico da Igreja Católica realizado por volta de 553 d.C., conhecido como Concílio de Niceia” (p. 234–235).

Essa alegação, no entanto, não encontra respaldo nos registros históricos. Para compreender melhor, é importante revisitar os eventos e documentos que moldaram a doutrina cristã nos primeiros séculos e analisar como o conceito de reencarnação foi tratado por teólogos e concílios da época.

Contexto Histórico dos Concílios

Os dois concílios realizados em Niceia, em 325 e 787 d.C., não trataram da reencarnação em suas deliberações. Em 553 d.C., ocorreu o Segundo Concílio de Constantinopla, mas os registros desse evento também não mostram discussões sobre a reencarnação. Esse concílio focou em outras questões teológicas, como a condenação de certas heresias relacionadas ao nestorianismo e monofisismo.

Uma possível origem para a confusão é a menção a Orígenes no Segundo Concílio de Constantinopla. Orígenes foi um influente teólogo cristão do século III, conhecido por suas reflexões profundas e, às vezes, controversas. Entre suas ideias, estava a preexistência das almas, que afirmava que as almas existiam antes de serem unidas aos corpos. Essa crença não deve ser confundida com reencarnação, que propõe a transmigração da alma para diferentes corpos após a morte.

Embora Orígenes tenha sido condenado por várias de suas opiniões no Segundo Concílio de Constantinopla, não há evidências de que ele tenha defendido a reencarnação. Pelo contrário, ele foi um crítico dessa doutrina, como veremos em citações apresentadas mais adiante.

A Reencarnação no Cristianismo Primitivo

Desde seus primórdios, o cristianismo rejeitou a ideia de reencarnação, em contraste com algumas filosofias pagãs da época, como o pitagorismo e o platonismo, que defendiam a transmigração das almas. A fé cristã baseia-se na crença na ressurreição — a transformação do corpo físico em um corpo glorificado na vida eterna. Essa doutrina é incompatível com a reencarnação, que sugere múltiplos ciclos de vida em diferentes corpos.

Os escritos de diversos Padres da Igreja reforçam essa rejeição. Irineu de Lyon, por exemplo, argumentou contra a transmigração de almas, apontando a falta de memória de vidas passadas como uma falha lógica na doutrina.

Escritos dos Padres da Igreja

Irineu de Lyon
“Podemos refutar a doutrina [dos helenistas] sobre a transmigração de corpo em corpo com base no fato de que as almas não se lembram absolutamente de eventos ocorridos em estados anteriores de existência. Pois, se fossem enviadas com o objetivo de adquirir experiência de todo tipo de ação, seria necessário que elas retivessem a memória das coisas já realizadas, para que pudessem completar o que ainda lhes faltava, e não, ao vagarem incessantemente pelos mesmos caminhos, desperdiçassem miseravelmente seu esforço em vão.”
(Contra as Heresias 2:33:1–2, 189 d.C.)

Aqui, Irineu destaca a incoerência de uma doutrina que postula aprendizado através de múltiplas vidas sem a capacidade de lembrar-se das experiências anteriores.

Tertuliano
“Agora, se algum filósofo afirma, como Labério sustenta, seguindo a opinião de Pitágoras, que um homem pode ter origem de uma mula, uma serpente de uma mulher, e, com habilidade argumentativa, torce todos os fatos para provar sua visão, ele não encontrará aceitação [entre os pagãos], e ainda convencerá alguns de que, por isso, devem abster-se de comer carne animal? Alguém poderia acreditar que deve abster-se, com receio de, por acaso, comer algum ancestral no prato?”
(Apologia 48, 197 d.C.)

Tertuliano ridiculariza a ideia da transmigração ao expor seus aspectos ilógicos e questionar suas implicações práticas.

Orígenes
“[As Escrituras dizem:] ‘E perguntaram a ele: “Então, quem é você? É Elias?” E ele respondeu: “Eu não sou”’ [João 1:21]. Ninguém pode deixar de lembrar o que Jesus diz de João: ‘Se vocês quiserem aceitar, ele é Elias que estava para vir’ [Mateus 11:14]. Como então João diz àqueles que o perguntam: ‘Você é Elias?’—’Eu não sou’? … Um membro da Igreja, que rejeita a doutrina da reencarnação como falsa, pode apelar para as palavras do anjo e apontar que não é a alma de Elias que é mencionada no nascimento de João, mas o espírito e o poder de Elias.”
(Comentário sobre João 6:7, 229–248 d.C.)

Esse trecho ilustra a forma como Orígenes distingue a doutrina cristã da reencarnação, negando que João Batista fosse Elias em sentido literal.

A Confusão na Nova Era

O movimento Nova Era frequentemente interpreta mal os escritos dos Padres da Igreja, atribuindo-lhes apoio à reencarnação onde, na verdade, há críticas ou rejeição explícita. Por exemplo, a ideia de que Orígenes teria ensinado a reencarnação é baseada em uma leitura errônea de sua doutrina da preexistência das almas.

Autores como Geddes MacGregor, em Reincarnation in Christianity (1978), alimentaram essa confusão ao sugerir, sem provas, que textos favoráveis à reencarnação poderiam ter sido suprimidos. Apesar de não apresentar evidências concretas, MacGregor afirma acreditar que Orígenes defendia a reencarnação “de alguma forma” (p. 58).

Conclusão

Os registros históricos e os escritos dos primeiros teólogos cristãos mostram de maneira clara que a doutrina da reencarnação não fazia parte do cristianismo primitivo. Pelo contrário, ela foi amplamente rejeitada como uma ideia incompatível com a fé na ressurreição e com os ensinamentos bíblicos.

Embora movimentos modernos como a Nova Era busquem reinterpretar a história e encontrar apoio para suas crenças, a verdade permanece evidente nos textos antigos. Os concílios da Igreja e os Padres cristãos reafirmaram consistentemente a visão de que a vida humana é única e que o destino eterno da alma é determinado por essa vida, culminando na ressurreição prometida por Cristo.

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